quinta-feira, 30 de agosto de 2007

Portfólio III

O que é: reportagem sobre as condições da literatura contemporânea
Aonde: jornal Hipertexto
Quando: Julho de 2007
Imagem: por Sabrina Feijó
Observações: eleita a melhor Reportagem Impressa no 20º Set Universitário. Veja a lista completa de vencedores.

Literatura atual relê clássicos
A utilização do passado no presente caracteriza os livros contemporâneos

As prateleiras das livrarias estão repletas de novas opções para os habituais consumidores de literatura. A novidade, entretanto, é parcial. Os livros que mais se destacam trazem histórias muito parecidas, abordando temas e personagens semelhantes. Entre as formas literárias recorrentes, as obras em série conquistam fãs e geram lucro para as editoras. A dúvida quanto à capacidade da literatura inovar nas fórmulas se instala.

Apesar do sucesso recente das coleções, esse não é um costume novo como explica a doutora em literatura e professora da Faculdade de Letras da PUCRS, Sissa Jacoby. “As obras literárias têm sua origem no folhetim, com os romances publicados em pedaços nos jornais. Na pós-modernidade, continua a questão de prender o leitor com um personagem envolvido em novas aventuras”.

As obras em séries conquistam fãs, mas também coletam críticos que seguem o pensamento do crítico literário Walter Benjamin: para ele, a arte ganha em quantidade, mas perde em qualidade. A professora do Instituto de Letras da UFRGS Márcia Ivana de Lima e Silva acredita na existência do diferencial na nova literatura: “É da quantidade que sai a qualidade. Os grandes escritores atuais conseguem dar um passo além, eles lêem a tradição e depois a trazem para a contemporaneidade”.

A literatura estaria ligada ao princípio em que tudo pode ser recriado. Um exemplo são os contos de fadas que fazem parte da cultura popular desde a Idade Média, mas foram esquecidos por um tempo até serem revisitados. “Eles começaram a serem retomados nos anos 60, 70 e ascenderam na década de 90, com desenhos da Disney. Hoje, Harry Potter é um conto de fadas ampliado que também tem elementos das histórias de fantasia, detetives e mitos”, conta a professora da PUC.

Márcia, professora da UFRGS, considera discutível tentar delimitar o que é original na literatura: “Às vezes a origem não está em Poe, ou em Conan Doyle, está antes, nos gregos até nas cavernas. A Bíblia, por exemplo, é um material farto que é reelaborado na literatura”. O diferencial está no talento inventivo de cada escritor, como no caso de Ítalo Calvino que utiliza elementos da mitologia oriental e das Mil e Uma Noites, no livro Cidades Invisíveis. Até mesmo o escritor Jorge Luís Borges dizia que estava tecendo sempre o mesmo texto. Há um ponto positivo nessa reinvenção, como salienta Márcia: “A vinculação com os clássicos é uma prova que a literatura contínua viva e que os novos escritores também são leitores da tradição”.

O recontar de histórias gera o reaproveitamento de personagens. A literatura está repleta de figuras marcantes que reaparecem em obras que muitas vezes não tem ligação com a anterior. Fausto é um exemplo que reencarnou inúmeras vezes em obras de autores como Goethe, Thomas Mann e Álvares de Azevedo.

Outro nome que reutilizou suas criaturas foi Machado de Assis. Quincas Borba aparece no livro em que é protagonista e em Memórias Póstumas de Brás Cubas. Aires intitula o Memorial de Aires e em Esaú e Jacó, história em que Assis se inspirou na trama dos irmãos que aparecem na Bíblia em Gênesis. “Mesmo na literatura, a linguagem dos textos se repete, fazendo um jogo de personagens que reaparecem em contextos de ação diferentes”, diz Márcia.

Para Sissa Jacoby, a repetição de personagens é usada para fazer uma reflexão: “Essa retomada é uma característica da literatura contemporânea que reflete sobre o passado com uma intenção crítica”. Uma figura que faz parte da literatura em tempos diferentes é Sherlock Holmes. A primeira menção ao nome foi feita no conto A aparição de Senhora Veal, publicado em 1704 por Daniel Defoe. Em 1880, os nomes Sr. Watson e Sr. Sherlock inspiraram Arthur Conan Doyle. Mais recentemente, em 1995, Jô Soares usou o detetive em O Xangô de Baker Street, uma paródia entre a história e a literatura policial, na qual personagens ficcionais interagem com pessoas reais, como Dom Pedro II, fazendo uma crítica a modernidade literária e histórica.

Autores se tornam personagens
De construtores de histórias a personagens de outras narrativas. Assim alguns escritores são imortalizados em histórias em que passam a ser personagens. Está se tornando comum, autores clássicos serem homenageados, não com biografias, mas como parte de um enredo fictício.

Livros consagrados como A Última Quimera, de Ana Miranda, e Em Liberdade, de Silviano Santiago, utilizam Augusto dos Anjos e Graciliano Ramos como protagonistas de uma trama. Na coleção O Bairro, Gonçalo Tavares transformou pessoas como Kafka, Brecht, Calvino e Fernando Pessoa em vizinhos para que, em cada livro, possa falar da trajetória destes homens, misturando realidade e fantasia. A professora Márcia Ivana Lima e Silva, da UFRGS, vê nestas obras uma maneira de aproximar o leitor do escritor: “Como coordenadora dos arquivos literários de Guilhermino César e Caio Fernando de Abreu, vejo como a dimensão humana do autor é genial para aproximá-lo do leitor, que passa a vê-lo também como um ser que tem conflitos e se dedica a literatura com vontade”.

José de Alencar foi precursor da interatividade
A proximidade do leitor com a obra literária cresce de forma que, para muitos, acompanhar histórias não é mais o suficiente. Juntando a vontade de se envolver diretamente com as tramas, com as facilidades proporcionadas pela internet, nasceram as fanfictions, histórias publicadas na web por fãs, não apenas de literatura, como também de filmes e séries de televisão.

O bruxo criado por J.K. Rowling não é campeão apenas na vendagem de livros, é também o personagem que inspira mais histórias. No Brasil, o maior Fandom (nome dado aos sites que reúnem as fanfictions) é o Potterish.com, com mais de 11 mil histórias e cerca de 40 mil membros. Para o editor do Potterish, Marcelo Neves, estas criações mostram a influência dos livros: “As fanfics são a prova que mais e mais pessoas estão desenvolvendo o hábito da leitura e escrita e também servem para amenizar a ansiedade dos fãs enquanto esperam a continuação da saga”. A professora Márcia Ivana elogia o trabalho dos fãs: “As fanfictions têm uma capacidade maravilhosa de imaginação e também são uma forma do autor conhecer melhor o leitor”. Existem exemplos na literatura em que a opinião dos leitores ajudou a mudar os rumos de um texto literário. O autor José de Alencar mudou o desfecho de O Guarani por causa da insatisfação do público que não acreditava na relação de Ceci e Peri. Atualmente uma obra consagrada, como Harry Potter, não tem como seguir os desejos dos leitores e a trama fica a cargo da autora. “J.K. Rowling sempre teve a história planejada e seguiu com ela até o fim”, comenta Neves.

Mesmo que os escritores não sigam à risca as vontades dos leitores, o que não falta são estilos literários para escolher. “O mercado editorial nunca publicou tanto e está muito democrático. Isso não significa que a qualidade seja o parâmetro para que aquele texto faça sucesso. Há o trabalho da mídia e o interesse do leitor que tem um pouco de medo de experimentar o novo”, reconhece Márcia.

A reinvenção constante da literatura é uma de suas principais característica e pode levar do novo ao velho. “Muitas matérias da literatura tradicional já estavam esquecidas e por terem sido retomadas por escritores contemporâneos faz com que sejam discutidas de novo”, diz Sissa Jacoby, professora da Faculdade de Letras da PUCRS.Mais importante do que comparar a literatura do passado e do presente é saber aproveitar as diferenças, como a professora Márcia destaca: “É bom que as pessoas leiam escritores como Agatha Christie e Paulo Coelho porque assim o leitor vai se capacitando para uma leitura mais aprofundada, até que ele comece nas histórias em quadrinho e chegue a Guimarães Rosa”. Apenas lendo é possível pensar e entender a literatura em sua totalidade.

No próximo Receituário: descansem bastante os olhos...

Um comentário:

Denis Pacheco disse...

Tenho esse impresso! rs
Gostei mto desse artigo... é bom lembrar que os clássicos se reinventam sempre e que pouca coisa hj em dia (ou talvez nada!) existe sem esse tipo de referência